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terça-feira, 27 de maio de 2014

Um livro de poesia de Dakini

A apresentar dia 28 Junho, um livro de poesia de Dakini (Dolores Marques)

 Do Prefácio de Sofia Gabro
(...)
É preciso entender “os sinais do tempo” e as vozes que vaticinam. Porque, em Moção, o Homem confunde-se com a própria terra que o sustém

            “Se escutares com atenção
            ouvirás da minha boca
            o sussurro do vento”
(Do poema “Alvorada”)

e nenhuma defesa será suficiente contra as raízes que se estendem da terra até ao Homem, fixando-se nas redes inefáveis e inevitáveis da sua memória.
Assim nos prova este livro.
E assim o comprovamos nós, meros visitantes desta terra tornada prodígio pela acção da emoção e da memória.


                                                                                              Sofia Gabro


sexta-feira, 23 de maio de 2014

Tinha a palidez laminar de um vento quente


Caiu nas ondas ao mergulhar!

Era Inverno 
e as águas frias
que lhe rasgavam a carne
desenharam uma espécie nova 
de dor

Deu à costa
 na espuma que vinha sempre morrer 
na minha praia

O remoinho esculpido no seu corpo
tinha a palidez laminar 
de um vento quente
cheirava ainda a tinta fresca
de todas as cores 
amanhecidas tarde

Dakini (Série "Mulheres de Areia"/10)
Tela: Paula Rego

Verter-me areia no teu colo


Capaz de me deitar 
nesse mar que tens
num olhar febril de quase 
adocicado Maio
eu sou mulher de amar
a jeito de te agarrar pelo meio 
e contrariar esta sujeição
a que me abandonaram
a verter-me areia no teu colo


Dakini (Série de Poemas "Mulheres de Areia"/10)
Tela de Paula Rego

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Profecia das águas


Avizinhava-se um tumulto 
no fundo dos mares

Dividiram-se as águas
espraiando-se nos céus 
em ondas de finas cores

Armaram-se todos os ventos 
que traziam tardios
os grandes amores
cegos de outros tempos
que por lá cirandavam
enquanto eu dormia
e tentava cumprir 
a antiga profecia 
das águas

DM(Dakini na série "Mulheres de Areia" 2010)
 A editar


Tempo de voltar


De corpo nu 
em baixios castigados
pelos ventos
visitei o lodo esquentado
de um velho casco
náufrago de todos os milénios
desde o resgate das águas

Jazia em pedaços
nas funduras indigentes
e por delinquente ser 
transformou-se num refúgio
das marés baixas
enquanto entoavam cânticos
em prol dos dilúvios 
que desfloravam o mar

Em torno de si mesmas 
as mulheres 
assinalavam o lugar 
com um circulo de fogo

 - era  tempo de voltar

DM (Dakini - Série "Mulheres de Areia")
Tela de Paula Rego

Fases Lunares

Se o meu ventre
se alimentasse das tuas mãos
sempre que te dispões a tê-lo
debaixo dos teus lençóis
seria num dia de sol
sem a lua por perto

Sinto que no corpo da lua
há ramificações dispostas
a prender-te os movimentos

Imagino-te deitado sobre a terra
banhado pelo seu brilho nocturno
confundindo-te com os raios solares

Não esqueças que te amo
desde a formação do mundo

DM (Dakini série  "Mulheres de Areia" 2010 
Tela de Paula Rego

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Do livro "Uivam os Lobos"

Sei das intempéries. Conheço o pranto do mundo. Sei, também que as lágrimas irrigam os campos enquanto da serra não chegam os ventos nem as últimas levadas. Este rio imenso já não conhece as trovoadas, nem alimenta correntes extraviadas. Absorve jasmins de outrora. É corrente que ainda se demora no meu peito. E, com abraços nos braços, estão os meus netos: Guilherme com seis anos, Afonso com cinco e Tomás com quatro (...)

Do Livro de Poesia "Uivam os Lobos" a ser apresentado brevemente

Fundo

(...)
O olhar de cada mulher resgatada desses fundos foca-se agora num vazio profundo. Elas querem ir mas não sabem o caminho. Elas querem mudar mas não sabem como. Elas desejam ser gente, mas os seus sonhos são castrados à nascença. Elas chegaram mas os portões ainda se encontram fechados. 
Há um universo de novas ideias e novos conceitos numa sociedade mais aberta, menos castigadora, menos manipuladora. Há tantas coisas novas a acontecer ao mesmo tempo. Porque continuamos a assistir à paragem do tempo, como se todos os relógios perdessem a corda e lhes faltasse movimento? 
Porque não conseguem sair desse fundo que as tenta reduzir a nada no meio dos escombros? (...)

Dakini
A Fundo de Mary (a editar)

Espantos



Caminhava lentamente
e sofregamente, engolia o silêncio

Mastigava em seco
as imagens rebuscadas
num dia sóbrio

Era o dia da sagração dos eleitos
mas, pecadores em dia de jejum

Ajoelhava-se perante
o mesmo cálice
erguido em jeito de oração

Mirava-se naquele leito de águas paradas
com todos os nomes
rebuscados e santificados

Aguardava ainda por novos ventos
esboçados com a pena gasta
e cansada

Chegara por fim o momento
que humildemente
lhe fez frente à tez morena

A aridez que descia do alto
toldava-lhe os movimentos inventados
num molde inexpressivo

Humanamente desenraizado
sem saber como sorrir
cerrava os dentes
enquanto mordia ainda
o sabor adocicado de um dia fértil
de espanto

Dakini - 2014
Escultura Ricardo Kersting