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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Celeste Almeida apresentou "Uivam os Lobos" no Museu João Mário, Alenquer

Falar de Dolores Marques, hoje com o pseudónimo Dakini, é para mim tarefa fácil!  
Fácil falar dela como PESSOA, pois tendo eu o prazer de a conhecer, viajo até  uma  pequena aldeia do concelho de Castro Daire , distrito de Viseu, perdida algures na serra do Montemuro!! 
Hoje perdida, mas em tempos remotos uma aldeia de grande importância administrativa pois foi um concelho, no inicio da nacionalidade! 
Moção, uma aldeia onde se ouvem “campainhas a chocalhar nos montes e nas mãos, línguas de fogo” (DO POEMA” LÍNGUAS DE FOGO”)! 
Uma aldeia onde as pessoas vão pela noite deitar as águas aos campos, receosas das misteriosas lendas de bruxas e lobisomens, que em noites de lua cheia amedrontavam novo e velho. 
No imaginário da autora encontram-se imagens simbólicas a carregadas de mistério, tal como esta: “Tinha um turbante dourado amarrado ao pescoço…” 
Será a serra abraçada pelos deuses ou pelo sol? 
Será o filho de deus a iniciar a sua peregrinação pela terra ainda virgem aos olhos da autora? 
Seria esta busca incessante pelo amor original, aquele que está acima de todas coisas? O verso “persegue-me esta brisa que me atiça em noites de lua cheia”  
Seria o seu imaginário quando a lua cheia iniciava o processo de transformação e o homem passava à forma animal, a BESTA ainda presente no seu tempo? O amor original, move-se da origem e atinge o núcleo do seu corpo em prazer factual e causal.
Uma aldeia onde o grão sofre a guilhotina da mó do moinho, onde se apanham as amoras das silvas e se comem lavadas no pó, onde se lavra a terra que cria o sustento “como se comem as amoras/ como se lavra a terra”   ( DO POEMA “ MOINHOS AO VENTO” )…enfim,  uma aldeia das terras altas, como altas eram as expectativas de Dolores Marques! 
Moção terra natal de Dakini, onde brincou com a lama, correu atrás das cabras e das vacas, fiou linho, teceu lã, bebeu água do fontanário e das nascentes térreas, rezou o terço ao serão, pediu a bênção ao Senhor pai e Senhora mãe, caiu e se reergueu  tantas e tantas vezes…era um berço demasiado pequeno para seu imaginário e ambição!
Inconformada por uma vida tão cheia de nada, pisando um chão feito pó, ouvindo o rezar dos sonhos jazidos no musgo, o toque das avé marias que a despertavam para a vida, querendo abraçar novos horizontes, respirar novos ares, tocar um céu maior, Dakini  resolve deixar para trás as suas origens, guardando na  alma os segredos voláteis, que ao longo da sua vida fizeram eco na voz do seu silêncio e na espuma dos seus dias!
Migra para a capital levando na bagagem o inconformismo que sepultaria na correnteza do Tejo, arregaça as mangas e lutadora singra na vida com determinação e mérito! 
“Um dia pensei…e eis que…por força das circunstâncias decidi partir, sem tempo para voltar…deixei-me levar para sítio incerto…” escreveu em “Uivam os Lobos”
Sem medo de assumir a vida e sem medo de se assumir a si própria, transforma o seu desejo criativo em escrita concreta. Ama e escreve o que sente. A poesia é parte do seu corpo. Escreve o tempo todo e  não apenas quando está diante do papel ou do computador! Esse é o momento final, em que as palavras saem dela e tomam forma exterior. 
UIVAM OS LOBOS, é o reencontro da autora com as suas origens, com a serra do Montemuro, com as terras altas, como ela orgulhosamente lhe chama!  
Filipe Campos Melo, o apresentador da obra no lançamento em Lisboa, referiu-se a este livro, como um regresso ao passado. Diz ele que este livro é uma peregrinação. 
Concordo com esta definição e que se encontra em 2 unicos momentos: Mimetismos e Cultos. 
A autora desloca-se no espaço e no tempo recriando novos espaços e novos tempos, povoados pelo seu imaginário dando voz a um tempo passado mas ainda presente tal como afirma Sofia Gabro no prefácio tratar-se “De Um palco de memórias, imensamente vividas, imagens remanescentes de um outro tempo, aqui presentes neste livro sob a forma de um eco” 
Será este UIVO dos Lobos, que na serra do Montemuro continua a acordar o vento, que a acompanhará ao longo da sua vida, esteja ela onde estiver! 
Dakini, Mulher coragem, determinada, sensível, afável…continua como ela diz: ” com receio de cair na boca do lobo” !
Dolores Marques iniciou esta aventura dos livros em 2008, com edição do seu livro “Olhares”, também este traduzindo muito das suas raízes. Aqui neste livro temos o nascimento da sua escrita, “uma escrita bebe”, como ela já o revelou. Poemas com uma linguagem simples, mas com a sensibilidade da mulher que tinha deixado para trás a força da terra e das gentes do Montemuro. 
“Subtilezas da Alma” o seu segundo livro de poesia em 2009 e em 2011 “Às escuras Encontro-te” o seu primeiro livro em prosa. 
Estes livros foram escritos em simultâneo, e por isso dentro da mesma linha temática. A introspeção abrindo caminhos, onde os silêncios ganhavam voz e a espiritualidade se desenvolvia para escritos mais profundos num encontro às escuras para chegar à luz que ia crescendo no seu mundo interior. 

Celeste Almeida

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Semicírculos

Agora que me 
sei longe
perto é o lugar
no côncavo 
dos olhos 
encurralados
na penumbra

Longe vai 
o tempo mirrado
em semicírculos
no rosto

Dakini 2014
Escultura: Ricardo Kersting

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Prefácio - "Uivam os Lobos" por Sofia Gabro

Prefácio

“Uivam os Lobos” assemelha-se a um palco de memórias. Nele se contam, e encontram, de um modo imensamente vívido, uma série de imagens remanescentes de um outro tempo, aqui presente sob a forma de um eco, retumbando por entre os versos que o firmam.

“Sou libertina de um costume antigo
tenho o corpo feito de metais
boca de sangue e ferro
braços presos nos matagais”
(Do poema “Tenho medo”)

“Soando nas têmporas
as batidas cardíacas
a reboque de um eco forte
no alto da cabeça”
(Do poema “Marés Negras”)

Nos poemas de Dakini, os quatro elementos confluem de um modo contínuo e extremamente natural estando estritamente ligados à vida de quem vive no (e do) campo, debatendo-se com os efeitos nefastos das intempéries e jubilando com os tempos propícios ao afloramento. Desta forma, somos convidados a tomar parte de um mundo recordado e, consequentemente, também recriado, onde se ouvem as campainhas “a chocalhar nos montes” e o “caminhar das águas”, ao mesmo tempo que o fogo se ateia para que nele se concentrem “todas as fogueiras” e o “vento uiva”, apesar do seu eco adormecer sozinho “a contraluz”.
Moção, a terra-origem de Dakini, desempenha, neste livro, um papel fulcral, servindo, não só de cenário e inspiração, como também de lugar de aprendizagem - já que foi aqui que a autora deu os seus primeiros passos e absorveu as suas primeiras estórias, iniciando a construção de todo um imaginário que a acompanhará ao longo da sua vida, despertando-lhe tanto temor quanto fascínio.

“A rua onde moro
é escura no pranto
ladainha surda
como um lobo de matilha”
(Do poema “Em transe”)

“Estão as portas fechadas
e eu tenho frio
muito frio dos lugares inóspitos
e medo
muito medo dos açaimes brancos
(…)
Tenho medo
muito medo das colinas
onde me esperam
outras histórias”
(Do poema “Tenho medo”)

 “Tinha no lugar
dos olhos
dois buraco
s negros
tão fundos
que se viu extinta
a ideia
de se aventurar
por novos pontos
no espaço”
(Do poema “Profeticamente”)

Por outro lado, Moção é descrito como um lugar de trabalho árduo

“Terminaram os preparativos
quando se gastaram todas
as braçadas de lenha
que tinham carregado
às costas”
(Do poema “Cultos”)

 onde o Homem persiste e insiste em controlar a própria Natureza, nomeadamente desviando o curso original de um rio por forma a aumentar as suas colheitas e, deste modo, delas poder (sobre)viver.

“Não sei
porque te desenharam
um rosto
te deram formas
(…)
contornando as margens
das velhas correntes
que estagnaram no lodo
que as fabricou”
(Do poema “Não sei”)

“Irrigaram-se os campos
numa mostragem breve
de como se deve beber
sem ter sede
de como se devem
encaminhar as águas
sem saber os cursos dos rios”
(Do poema “Tempo de espera”)

Contudo, esta “Terra infértil” nem sempre se deixa “domar pelos braços/de quem tem fome”, por isso “as lágrimas irrigam os campos enquanto da serra não chegam os ventos nem as últimas levadas”.
Nesta terra de becos, carpinteiros, “gigantes/adormecidos/no caminho/das giestas”, peneiras, raposas, “olhares mortiços”, moinhos, “línguas de fogo”, palmos de chão galgados, orquídeas, foices e “enchentes na voz”, a religião enraíza-se. Daí que os rios onde as pessoas se miram sejam de “água benta”, as virgens sejam excomungadas “pelo canto das aves” e a terra, “pisada e recalcada”, não esteja abençoada quando se encontra “fria/nua e crua”.

“Já me vi em dias de sol
sem sol
a sacudir
o sino da capela”
(Do poema “Já me vi em dias de sol sem sol”)

Todavia, e apesar de “em redor das estrelas” o movimento ser circular e, deste modo, regrado e cíclico como a própria Natureza se espelha sobre os campos,

“Dos ramos caídos
desponta a folhagem nova”
(Do poema “Mundo dos novos loucos”)

“havia raízes tenras
a nascer
nas enseadas”
(Do poema “Já me vi em dias de sol sem sol”)

a identidade, por vezes, esmorece; e os limites do corpo tornam-se uma miragem ou uma “mera desfocagem” deambulando por “atalhos remendados/e restos de eras disseminadas”. Nesta circunstância, o encontro “dum lugar incerto/mas dum tempo certo”, onde o reencontro exista, torna-se urgente, já que a tristeza avassala todo o mundo disseminando caos e solidão.

“Mundo submerso
por duas lágrimas
a molharem-me os pés
ainda nus sobre a terra
enquanto a chama corrente
aguarda pela variações”
(Do poema “Tempo de espera”)

Fizeram-se verdes
os meus olhos
e negras todas as bocas
ao caírem nas luras
de um corpo proscrito
moldado em aço
(Do poema “Corpos de Aço”)

Soletrei o teu nome
e só o som da minha voz
foi eco
(Do Poema “Eco Feroz”)

Não obstante, Moção também é palco de “dias de sol sem sol”, conduzindo-nos aos tempos onde existiam “caminhos longos/a fazerem-se breves” nos passos “ainda frescos”. Nesses dias, há corpos trôpegos “a escutar/o canto dos pássaros” e cancelas semiabertas “aos voos nocturnos”.

“Tão forte a corrente
que se fez pele
na minha pele
como um vento”
(Do poema “Caiu-me mel”)

A terra que cria, porém, é a mesma onde o corpo se decompõe. Daí que existam “Foices a calcular a métrica” que farão os corpos “alcançar/os caules/as folhas/e/as raízes secas/junto ao chão”, sendo necessário que o conhecimento das terras passe de boca em boca, e de geração em geração, para que os próprios cultivos também se propaguem e, desta forma, se perpetue tanto o ciclo da vida como o seu sustento.

“Diz-me
como ouvir o prenúncio
da última idade
como se apanham as cerejas
como se comem as amoras
como se lavra a terra
se regam os campos
e
se mondam as searas”
(Do poema “Moinhos de vento”)

É preciso entender “os sinais do tempo” e as vozes que vaticinam. Porque, em Moção, o Homem confunde-se com a própria terra que o sustém

“Se escutares com atenção
ouvirás da minha boca
o sussurro do vento”
(Do poema “Alvorada”)

e nenhuma defesa será suficiente contra as raízes que se estendem da terra até ao Homem, fixando-se nas redes inefáveis e inevitáveis da sua memória.
Assim nos prova este livro.
E assim o comprovamos nós, meros visitantes desta terra tornada prodígio pela acção da emoção e da memória.


Sofia Gabro

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Apresentação de "Uivam os Lobos" em Alenquer

"Uivam os Lobos", vai estar no Museu João Mário em Alenquer. A Apresentação estará a cargo de Celeste Almeida, (autora dos programas "As Nossas Raízes, o Passado e o Presente, e "À Descoberta de Portugal" na Rádio Limite de Castro Daire.
O grupo Almas no Teatro fará uma representação de alguns poemas do livro


Ser Poeta é...

Queria falar-vos sobre a poesia de agora. A que move muitos poetas. A poesia que desfila diariamente pelas redes sociais e sites na internet.

Perguntaram-me num programa de radio se com a poesia se ganhava dinheiro. Penso que se ganham coisas mais importantes do que o dinheiro. Mas, isso também depende do que é importante para cada um como garantia para ser um bom Poeta
Florbela Espanca, escreveu: “ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens…”

Pois é! Ser poeta nos dias de hoje, para muitos poetas, não é o mesmo que para Florbela Espanca. Para muitos, ser poeta é ser maior entre os homens. É garantir um estatuto, um nome, engordar o ego com a satisfação de muitos desejos de poder. Migram os seus versos por caminhos terrenos, em busca de algo que os ajude a viver neste mundo podre e doente.

Dizem por aí que a poesia é a expressão da linguagem da alma. Dizem também, que a poesia expressa os sentimentos mais íntimos e profundos. Dizem que acode também os pensamentos mais incautos.
Dizem tanta coisa da poesia de antes, dos que foram Poetas e o continuam a Ser entre nós - espíritos errantes pelo mundo, a quererem prevalecer e revelar aos poetas ainda vivos que a morte não existe para qualquer Poeta, assim como não existe para a vida.

Mas que diriam os poetas de antes, se pudessem manifestar-se através da linguagem eterna, neste novo mundo onde a poesia se alastra como rastilho de pólvora, por todos os caminhos virtuais, onde nasce a cada dia um poeta?

Que diriam eles, Poetas Maiores que se eternizam num além tão próximo, se visitassem o aquém tão distante para muitos poetas que para o serem se esquecem de ser Pessoas? Desfilam num tapete forrado de palavras incertas num corrupio de vaidades, onde a demagogia cria raízes profundas. Trazem-nos imagens desfocadas no meio dos escombros, envoltos em palavras inusitadas e despropositadas, a utilizar a linguagem da alma. A poesia sofre por todos os poetas de antes e até pelos poetas de agora, que à força de quererem ser poetas, esquecem onde colocar o verso no Verbo, forçando-o a visitar mundos desequilibrados.

Neste mundo virtual, a poesia anda de mãos dadas com um maior número de gostos, para que a classificação seja justa com o estatuto merecido. Não esquecer também os títulos. Isso é importante, para se ajuizar sobre um bom poeta;
Senhora Doutora, senhor Professor, senhora Professora, Senhor Engenheiro,….e mais isto aquilo, para revelar que ali não mora só a poesia, não. Ali reside um bom Poeta;
 “bravo Senhor Doutor, Doutora, Professora ou Professor pelo grandioso poema que aqui nos deixa.”
“o seu nome, Senhor Doutor, devia figurar numa rua da nossa cidade, como um dos maiores poetas da actualidade.”

E por aí adiante.

A alma da poesia encolhe-se, contorce-se de dor, fragmenta-se sem dó nem piedade, pelas ruas escuras de uma cidade, onde os mendigos criam em cada naco de pão, um poema, um verso, o desejo de serem só almas errantes pelos caminhos, onde o verso no Verbo  os acolhe.

Para os poetas de agora não basta ser poeta. Corroídos por um desejo doentio de serem mais qualquer coisa…coisa que se veja, que os classifique numa ordem imposta pelo sentido ascendente até atingirem o topo da pirâmide, onde estão os poetas maiores.

Mas, invertendo a ordem ascendente segue-se a descendente, a que nos fez vir aqui para nos revelarmos Pessoas na vida e poetas num além tão perto do Arquitecto Maior. O maior Poeta de todos os tempos. A fonte é e sempre será a mesma. Não se iludam Poetas!

Dakini


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Linguagem do amor


No tumulto dos olhos
revoltam-se
os olhares torturados 
pela ausência
de cor

No alvoroço da noite
abrem-se os lábios
à nova torrente
escancarando 
a dor

Esbeltas são 
as lágrimas
que se afogam
na linguagem
do amor

Dakini

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Voz



Ínfimas as luzes
baças
da cidade
nos seus olhos

Ternos afagos
soltos
pela manhã
os corpos
adormecidos
no cais de pedra

As luzes
Incendiaram 
à noite
a loucura 
nos abrigos

Ela, a cidade
calou uma
e outra vez
o medo
do lado 
de dentro
dos muros

Fundida
a última estrela
colada nos vitrais
do altar-mor
dos desejos

Despojados
do sonho
seguram  
os rostos
suados
amordaçados
ultrajados

Desfilam à vez
os corpos
as almas
e as correntes
do Tejo

A cidade
calada
não ouve 
o grito
dos silêncios
unidos numa só
voz

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Manifesto

Escultura: Ricardo Kersting

Sempre em puro manifesto
contra tudo e todos
mas sem nada
que a possa dissuadir
de prevaricar as ondulações
frequentes do seu pensamento

Esmagada pelo mudo  
que a viu crescer
vai de porta em porta
vendendo ideias
e escrevinhando versos
que a fazem acontecer
num único movimento
dos olhos

Mas pensando bem
os seus versos falam de quê?

- carece ser vista 
pelos olhares do mundo

Dakini: (Série "Mulheres de Areia")2010

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Manuscrito

Acordou sentado num conto 
ainda por escrever. Deitou-se de novo
sem saber como iria ler 
esse manuscrito
proscrito 
na face contrária dos olhos

Lembrou de um sonho inanimado
no centro da terra. Esburacou os olhos
agora centrados
nesse lugar 
onde 
outrem escreveu
o que ainda faltava escrever
*
Dakini (Série de poemas "Infinito dos Olhos"/14)

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Miragens

Nada se constrói
com o latejar das contas
de um rosário antigo
esquecido
nas pontas dos dedos

Um só dedo
é recluso do passado
anula o presente
e acusa o futuro
de ter transbordado
borda fora

Descrentes são as pedras
que sustentam um altar
erigido no tempo


Dakini 2014

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Pasmo meu


Pasmo meu
por sentir os corpos
que se remedeiam 
uns e outros
são à luz de outras vidas
a procura de um nome
no meio de tantos 
os sobreviventes

Este cumular 
de sons dispersos 
nascidos e criados 
no centro da terra
levam-me a acreditar 
que há vida para além 
deste mar

Dakini "Mulheres de Areia" 2010

Lá fora

Enquanto as árvores crescem, mirramos por entre as suas folhas. Dizem que a fome é negra, mas certas fomes morrem de espanto sem nunca conhecerem o verdadeiro sentir-se mirrar aos poucos. Há poucos dias apenas para mostrar do que somos capazes numa vida, mas ela é uma aposta na nossa capacidade de nos revermos em muitos e ocasionais desaires da vida. 
Vive-se revive-se por entre as fragas soltas que nos empurram para um poço sem fundo. Nesse poço esbracejamos os braços numa procura vã de sermos mais além, mas o fundo é negro e os nossos olhos agora fechados esbarram contra os muros que ladeiam o nosso corpo. E, ele não sente, nem consegue abrir-se para um todo existente lá fora. O além está mesmo ali tão perto.
Lá fora corre agora uma brisa ressequida, tal como são os nossos gestos quebrados. Alucinados, tresloucados arrasados pelo nosso próprio sentido desorientador, caímos e não nos sentimos a cair nas armadilhas ali há tanto tempo. Gastamos energias positivas, canalizamos as negativas e levamo-las a trair o nosso próprio medo por não conseguirmos ser o que a vaidade que reveste o nosso ego, quer que sejamos. 
Tristes medos e afloramentos que se esvaem por entre os nossos olhos. Então, pegamos numa folha de papel em branco e sufocamo-la como quem sufoca a sua própria sombra já mais que remendada. São remendos já cansados de tanta miudeza a cair no ridículo, que até a própria inveja se desfaz em pó. Aí pegámos nela sabendo que se trata de um mal que corrói os nossos sentidos e lançamo-la aos quatros ventos para que ela própria aponte o dedo a quem passa desprevenido.
Estar alerta nem sempre é possível, mas é possível e sem delicadezas de forma alguma, tentar abafar com o pó do caminho tanta mesquinhez para se sobreviver neste mundo tão cheio de mentes insanas.

Dakini 2014

Princípio de um Vazio

No principado
morava um Príncipe
tinha já marcado o tempo
e sem Norte
foi indo até ao ponto
mais alto do Sul

Sem o encontro habitual
dos dias claros
faz deles noite cerrada

Ajoelhado, entoava
cânticos abissais
encolerizado, suplicava
por novos tempos

No princípio
tudo era um nada absoluto
tudo era um ponto
onde nascia um novo ponto

Mas por ora
tudo é movimento
intersecção
escoriação
escuridão…
até que do princípio
exploda o vazio
lacrimejante
no rosto marcado
por um único ponto
onde nasce
a verdadeira exclamação

Onde se encontram
os rostos inexpressivos
com marcas até de um nada
prestes a iniciar-se?

Num jardim abandonado
está agora mais próximo
de ser amanhã

Na rua sem nome, encontrou
alguém que lhe disse onde era
o princípio de tudo

Dakini 2014

Lágrima


Gente


Verso




O além é o fim 
para quem nasce
e não se reconhece
no verso
um verso
o limite que define 
a contínua expressão
da linguagem 
de um poema
sem voz

Ouvem-se vozes roucas
de poetas 
mascarados 
de mares e céus 
de terra e fogo 
de gente que canta 
alegremente
e somente
em desvario se contrai
nos baixios de um rio

Alongam-se linhas
sobrepostas
à sua própria voz

Desfilam agora
todos os momentos
que deram voz
à ordem estabelecida
de um poema
afogado em prantos nus

Tu, meu verso inteiro
quanto de solidão
te firma poesia nascida
e criada nas vésperas
de uma noite em que foste 
terra, ar, água e fogo ?

Sopro

Segurei a tua mão
ensinei-te a caminhar 
descalço no meu jardim

Fui corrente demorada
no teu corpo. Alma em ti

E tu, não sabes
das manhãs claras
que são vida e sopro 
em mim

Dakini 2014

Porque

Porque a amizade é instantaneamente, muitas das vezes, um trato entre as partes comuns, envolvidas nesse mimetismo egocêntrico a coalhar os grossos modos abandonados no regaço.

Dakini

CD-Rom

As pessoas estão cada vez mais robotizadas, como se lhes tivessem introduzido um cd-rom na cabeça. 
Lamentavelmente caminhamos em direcção ao caos, desenraizados, desumanizados, empobrecidos.
Dakini

Ó Vida

Caímos e não sentimos o tamanho da queda tal a força imaginária que povoa os nossos sentidos desorientados.
Orientam-se as massas e levedámo-las para que sustentem este querer desmedido, este querer ser maior e mais alto a tocar a última estrela viva do Universo. Este querer ser mais além, um além distante, muito distante 
do lugar onde a vida espera por nós.
Ó vida!

Dakini

UM

Todos juntos somos Um, mas o "UM" é tão pequeno para muitos que preferem dividir-se em fragmentos esquecidos no Universo.



Dakini

quarta-feira, 2 de julho de 2014

"Almas no Teatro" no Lançamento de "Uivam os Lobos"


E porque as palavras voam.

E porque há Almas predispostas a fazê-las viajar por lugares incertos, até que repousem nos lugares certos. Neste caso, “Almas no Teatro” foram um elo de ligação entre muitas as que ainda ficaram presas na minha voz rouca.



 Vadias estão agora.


São um prenúncio de algo, desprovidas de emoção e até da razão quando pensam ainda coladas nos muros frios em volta dos grafitis pensados com imagens distorcidas, umas vezes, outras formando novas pontes entre o passado, o presente e o futuro.






terça-feira, 1 de julho de 2014

Dakini - Esboço da Personagem traçado por São Gonçalves

Conheço a Escritora Dolores Marques desde o inicio da minha descoberta no mundo das palavras escritas, já lá vão uns 8 anos, bebi muito da sua sabedoria na escrita, da sua elevada espiritualidade transmitidas na sua poesia e na sua prosa, foi um exemplo por mim a seguir.
Foi com a sua ajuda e a sua mão que comecei esta aventura da edição dos livros com a primeira antologia "Tu cá,tu lá".
Convidada a apresentar  a "Dakini",um dos seus muitos "eus femininos "na sua escrita,disse logo que sim.  Primeiro porque é para mim sempre uma honra e um privilégio estar perto da Dolores nestes momentos, como é para mim um desafio enorme traçar um perfil desta sua outra metade, A DAKINI.
Quem é Dakini, que hoje aqui se apresenta com a edicão do seu primeiro livro de poesia?
Tentarei responder a este pergunta à luz das minhas leituras, e das minhas pesquisas, antigas e recentes , de obras que possam ajudar na descodificação (a minha) da mulher ,e da leitura que fiz dos seus poemas.
A primeira personagem que me veio à ideia para comparação,foi a personagem "Quina" A SIBILA da escritora Portuguesa Agustina Bessa Luis, mas  ao estudar mais profundamente a personagem ,logo achei que apesar das semelhanças  se justificarem; apenas pelo espaço em que a Dakini nasceu,as raízes familiares,o espaço rural, a profunda ligação à natureza e aos seus mistérios, e de ambas serem possuidoras de uma  "sabedoria profunda acerca de todos os ritmos da consciência, do instinto, das forças telúricas que se conjugam no fatalismo da continuidade" pouco mais havia para extrair desta sibila, que me justificassem a força que é a Dakini.
Segundo a doutrina do budismo ,”Dakini pode ser compreendida como uma Deusa ou deidade feminina no idioma tibetano, o termo Dakini é Khandroma, que significa “
aquela que atravessa o céu” ou “a que se movimenta no espaço”; As Dakini são entes femininos energéticos ,que evocam o movimento de energia do espaço..elas representam o caminho da transformação das energias negativas em energias luminosas. Representam também o desnudamento mental, livre de todas as sombras”
Ao fazer esta leitura das divindades tibetanas , lembrei-me de um livro que li há uns anos e que me marcou profundamente  "O feminino reencontrado"de Nathalie Durel Lima,onde num estudo profundo explica em como as mulheres modernas tinham que fazer uma caminhada interior,através dos arquétipos e dos mitos  femininos e assim desta forma  reequilibrar, com consciência a poderosa beleza do feminino, e reencontrar o poder da sua Deusa Interior.
É nesta caminhada que encontro a Dakini, a mulher Dolores Marques na sua caminhada interior para encontrar a sua Deusa interna, aquela que melhor representa o seu desnudamento mental.
"Uivam os lobos",é o titulo do seu primeiro livro,já a psicanilista Clarissa Pinkola Estés,no seu livro "Mulheres que correm com lobos” ,desmistifica e compara o papel dos lobos e da mulher nas sociedades modernas. Ao investigar o esmagamento da natureza instintiva feminina, Clarissa descobriu a chave da sensação de impotência da mulher moderna."abordando 19 mitos e lendas ,a mulher pode imergir dos longos condicionamentos culturais e encontrar a loba que vive em cada mulher.
Dakini é então esta mulher que encontrou a sua Deusa interior, a sua força provem dos ciclos da terra, da profunda ligação as suas raízes mais profundas, da sabedoria da terra, da sensibilidade e da paixão pela vida.
Dakini é um exemplo a seguir, de como em todas nós há uma deusa interior a descobrir, uma loba que espera libertar-se e uivar o seu próprio hino como um cântico de libertação e desnudamento.

São Gonçalves.


segunda-feira, 30 de junho de 2014

Apresentação de "Uivam os Lobos", por Filipe Campos Melo

Boa tarde,
Começo por agradecer o convite da Dolores, uma querida amiga que muito estimo, e dizer que é com muito gosto que aqui estou.

Cabe-me, nesta sequência, a apresentação do livro que hoje aqui nos trás
A primeira tarefa para quem pretende apresentar um livro é, evidentemente, ler o livro,
E assim fiz.

Acontece que, efectuada essa tarefa, surgiram-me vários questionamentos,

Esclareço, nenhum em relação às palavras que hoje vos são apresentadas, porque reconheço nesta escrita uma evidente qualidade, quer pela profundidade, quer pela sensibilidade, características que sempre encontro no verso da Dolores

Mas uma hesitação prolongada quanto à forma de iniciar esta apresentação
É que, após ler e reler, demoradamente, o livro, surgiram-me, quase instintivamente, inúmeras ideias e formas de o abordar 

E, de facto, talvez seja apropriado falar de abordagem quando nos dispomos, como foi o meu caso, a invadir as palavras de outra pessoa,
Embora, confesso, terminadas as leituras, a sensação que permaneceu é de que, afinal, foi o texto que me invadiu, numa pluralidade de inquietações.

Resolvi, então, deixar as palavras repousar durante uns dias,
Até que, num determinado momento, um eco se tornou predominante
“Não se deve voltar ao lugar onde fomos felizes”.

Devo esclarecer que, definitivamente, não concordo.
Eu, pessoalmente, recuso-me é a voltar aos lugares onde fui infeliz.
Mas, na verdade, todos nós, inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, regressamos a esses lugares

Esta ideia – de não voltar ao lugar feliz – impôs-se, assim, como o ponto de partida para esta apresentação

E como um improviso absoluto é sempre absolutamente imprevisível, vão-me permitir que vá utilizando umas notas que alinhavei a este propósito

 “Não se deve voltar ao lugar onde fomos felizes”.
Ora, regressar a um lugar, percorrer um caminho anteriormente percorrido, é sempre uma peregrinação.

Poderíamos talvez definir o conceito dizendo que uma peregrinação é o caminho que um devoto, voluntariamente, se predispõe a fazer rumo a um lugar que crê ser sagrado.

Assim, uma peregrinação é sempre uma romagem motivada numa crença.

Às vezes é prece, promessa ou profecia,
Outras vezes é autopunição e até via para a redenção de um “pecado-passado”.
  
Há, contudo, na sua variação conceitual, constante e inquestionavelmente, um traço de religiosidade que lhe é indissociável

E se assim é, para compreender uma peregrinação é absolutamente necessário, antes do mais, perceber porque determinada pessoa se predispôs a efectuá-la.
Mais ainda quando sabemos que peregrinar tem sempre imanente uma ideia de penosidade e de sofrimento.

Esta é a minha fundamental convicção – este livro é uma peregrinação.

É certo que, enquanto caminhar, uma peregrinação implica movimento,
Mas, todavia, peregrinar não exige necessariamente um deslocamento físico, nem o seu percurso é necessariamente medido em metros.

A invocação interior de uma memória é seguramente uma deslocação, mesmo sendo, como reconheço, uma deslocação inerte.
Este movimento (aparentemente imóvel) reconduz-se como pensamento
E o pensamento, pela sua inderrogável essência, estático nunca é.

Assim, quando é só pensamento, a peregrinação é um vaguear, um percorrer de lugares passados, nos quais, bem sabemos, a angústia sempre assoma e nos confronta.

Pela própria natureza do passado, que, por o ser, não volta mais.

Mas se o passado – precisamente por ser passado – não volta,
A ele – por passado ser - podemos nós regressar.
Assim se pode encontrar, nos primeiros versos do primeiro poema, a anunciação de um caminho

«Traziam campainhas
a chocalhar nos montes/
e nas mãos
línguas de fogo/
douta inspiração/
chegada cedo
de lugares primitivos»

Reitero, na minha interpretação, sempre discutível e subjectiva, “Uivam os lobos” é uma peregrinação.

Um regresso ao lugar passado, seguramente,
Ou como diz o verso, “aos lugares primitivos”.
Não deixa, aliás de ser curioso notar que, em latim, peregrinação diz-se “per agros”, ou seja “pelos campos”.

Por lugares e também por um “Eu”, interior e anterior, que se auto observa.

E, de facto, no livro, pelo verso, o sujeito poético retorna à terra inicial, no mesmo recriada, como bem se refere no prefácio deste livro,

Nesse prefácio, aliás excelente e que enriquece o livro de forma marcante, desenvolve-se a ideia
Dessa umbilical ligação do verso à terra, tantas vezes infértil,
Da indissociável raiz da palavra que se escreve num palco de memórias, onde se encena, citando o prefácio, “todo um imaginário que acompanhará (a autora) ao longo da sua vida, despertando-lhe tanto medo quanto fascínio”.

Afirmação que, aliás, o verso confirma

«Estão as portadas fechadas
e eu tenho frio/
muito frio dos lugares inóspitos/
e medo/
muito medo dos açaimes brancos»

E quando assim é, voltando ao prefácio,
Nenhuma defesa será suficiente contra as raízes que se estendem da terra até ao Homem, fixando-se nas redes inefáveis e inevitáveis da sua memória”.

E é exactamente através dessa memória que se inicia esta peregrinação ao passado,
É um regresso a um determinado tempo,
Um tempo inicial, percorrendo os campos, voltando á fonte da inspiração, original

Mas não só,
O sujeito poético, observador, parte de um tempo presente e regressa aos lugares passados, através da memória, recriando esses lugares,
Mas também, num movimento ambivalente, projecta-se no futuro, mimeticamente antecipando o devir, poeticamente o pressagiando.

Diz o verso

«Tenho medo/
muito medo das colinas/
onde me esperam
outras histórias /
visionárias de novos mundos»

Como referi, para se perceber uma peregrinação é necessário compreender a motivação que a sustenta.
Dispus-me, assim, a tentar perceber qual a motivação deste livro, desta peregrinação.

Uma das pistas mais imediatas é a percepção da sistemática em que o livro se estrutura

O livro é composto por dois capítulos e, diria ainda, por um epílogo
Função que atribuiria ao último poema “Já me vi em dias de Sol, sem sol”, para mim, aliás, talvez o mais belo e profundo poema deste livro.
Todavia, se realmente o for, é um epílogo oculto, porque no livro não o encontramos com essa autonomia formal

O que encontramos é um primeiro capítulo denominado “Mimetismos”,
E um segundo capítulo intitulado “Cultos”.

Ora, poderíamos dizer que mimetismo é a semelhança que um determinado ser ou organismo adquire por influência do meio onde se insere,
É, no fundo, a adaptação a uma realidade através da sua replicação
Estamos, aqui, portanto, perante o conceito de evolução convergente
Na verdade, todos somos objecto de socialização, de forma sempre intensa, muitas vezes forçada
E, cada vez mais, vivemos numa sociedade mimética

Do ponto de vista das espécies,
Referência inevitável em face do título do livro,
O mimetismo é um processo de evolução da espécie, resultado da sua mútua interação, que conduz a uma harmonização ou padronização de comportamentos

Neste livro, o sujeito poético figurado é um lobo, melhor uma loba, que
Tendo deixado a alcateia, caminha agora solitária,
Num percurso que procura a compreensão do mundo onde se insere,
Mas que é simultaneamente um percurso de auto-compreensão

Este primeiro capitulo do livro, é o regresso ao passado, á terra,
E, assim, aqui vamos encontrar o sonho, às vezes pueril, a crença, o amor (o conceito primeiro, o amor original), mas também a desilusão, a descrença, o desamor que logo lhes sucede

E, assim sendo, existe também, imersa ao verso, uma ideia de evolução divergente, na medida em que percebendo a sua mimética aculturação, num olhar ao espelho, o sujeito poético rebate-a, questiona-a, rebela-se

Na verdade, há aqui uma ideia de destino, a ideia de uma predestinada convergência com um mundo que não era o pretendido, mas que é o mundo efectivamente existente – o presente

Assim diz o verso,

«Não sei porque te desenharam um rosto/
te deram formas ignorando o simples facto de te saberes uniforme/
contornando as margens das velhas correntes
que estagnaram no lodo que as fabricou»


Dizem que os lugares se alteram com a passagem do tempo
Mas muitas vezes o passar do tempo altera ainda mais a pessoa que os observa
Talvez os lugares nunca sejam exactamente iguais,
Mas certamente diferente é o sujeito quando a eles regressa

Assim, este movimento de regresso nunca se chega a desprender completamente do presente que o observa, e, por essa razão, sente-se no verso uma profunda nostalgia, às vezes saudade, às vezes conformação, outras vezes até crítica

Como se escuta no verso

«Dá-me da madrugada
o que é a tua voz/
e diz-me dum sítio/
dum lugar incerto/
mas dum tempo certo
onde me esconder»


Porque as coisas nunca são como as imaginamos, nem sequer como as vivemos, há uma marcante nostalgia neste capítulo
Até porque, afinal, esta peregrinação é uma auto-peregrinação

O segundo capítulo denomina-se “Cultos”
Um culto processa-se por um acto solene, por uma liturgia
Um culto é, assim, um caminho solene para a compreensão,
Quando se perceciona o objecto do culto,
Compreende-se também a identidade e a motivação do devoto.

Neste sentido também neste capítulo encontramos um caminho de auto-compreensão
Mas já não no tempo passado,
Agora é um estar, um passo presente que, simultaneamente, antecipa o futuro

E, assim sendo, necessariamente um espaço de esperas, como se diz no primeiro poema desta parte

«Mundo submerso
por duas lágrimas
a molharem-me os pés
ainda nus sobre a terra/
enquanto a chama corrente
aguarda pelas variações/
num tempo de espera»


Mas é também um espaço de angústia, às vezes nostalgia, outras quase desespero

«Aconteceu-me um tempo
que me arrasta
lá para os lados
onde me esperam
todos os moinhos de vento»

Cultos, é assim, um auto reencontro, entre a percepção de um passado, tanto aculturado, quanto doloroso,
E o questionamento de um presente-futuro

Deste movimento emerge a poesia, num olhar que se define métrico poema

«Tristes são todos os olhares
que engoliram o mundo /
sem saberem
onde enterrar os corpos/
Foices a calcular a métrica
que os fará alcançar /
os caules
as folhas
e
as raízes secas
 junto ao chão»


Permitam-me apenas mais um sublinhado,

Existe um traço essencial que percorre todo o livro,
Que é simultaneamente mimetismo e culto,

Um amor, uma emoção profundamente marcante, que procede da origem e que, ainda que agora ausente, se mantém demasiadamente presente

Como por exemplo se sente neste trecho:
«Esqueci-me de ti
quando o vento se aproximou /
falando-me nas horas vagas
dum mar imenso de saudade»


Disse que para se perceber uma peregrinação seria necessário compreender a motivação que a sustenta.

Retomo, agora e como ultima referência, o título do livro: “Uivam os lobos”.
Um uivo é um grito entristecido, um eco de um passado que se antevê igual

E, se assim é, pergunto-me: Mas, afinal, porque uivam os lobos?

Escutemos, uma última vez, o verso

«Uivam os lobos
por falta de nortadas quentes/
caminhantes na certeza
de uma única noite/
que será eterna»


Filipe Campos Melo