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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Semicírculos

Agora que me 
sei longe
perto é o lugar
no côncavo 
dos olhos 
encurralados
na penumbra

Longe vai 
o tempo mirrado
em semicírculos
no rosto

Dakini 2014
Escultura: Ricardo Kersting

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Prefácio - "Uivam os Lobos" por Sofia Gabro

Prefácio

“Uivam os Lobos” assemelha-se a um palco de memórias. Nele se contam, e encontram, de um modo imensamente vívido, uma série de imagens remanescentes de um outro tempo, aqui presente sob a forma de um eco, retumbando por entre os versos que o firmam.

“Sou libertina de um costume antigo
tenho o corpo feito de metais
boca de sangue e ferro
braços presos nos matagais”
(Do poema “Tenho medo”)

“Soando nas têmporas
as batidas cardíacas
a reboque de um eco forte
no alto da cabeça”
(Do poema “Marés Negras”)

Nos poemas de Dakini, os quatro elementos confluem de um modo contínuo e extremamente natural estando estritamente ligados à vida de quem vive no (e do) campo, debatendo-se com os efeitos nefastos das intempéries e jubilando com os tempos propícios ao afloramento. Desta forma, somos convidados a tomar parte de um mundo recordado e, consequentemente, também recriado, onde se ouvem as campainhas “a chocalhar nos montes” e o “caminhar das águas”, ao mesmo tempo que o fogo se ateia para que nele se concentrem “todas as fogueiras” e o “vento uiva”, apesar do seu eco adormecer sozinho “a contraluz”.
Moção, a terra-origem de Dakini, desempenha, neste livro, um papel fulcral, servindo, não só de cenário e inspiração, como também de lugar de aprendizagem - já que foi aqui que a autora deu os seus primeiros passos e absorveu as suas primeiras estórias, iniciando a construção de todo um imaginário que a acompanhará ao longo da sua vida, despertando-lhe tanto temor quanto fascínio.

“A rua onde moro
é escura no pranto
ladainha surda
como um lobo de matilha”
(Do poema “Em transe”)

“Estão as portas fechadas
e eu tenho frio
muito frio dos lugares inóspitos
e medo
muito medo dos açaimes brancos
(…)
Tenho medo
muito medo das colinas
onde me esperam
outras histórias”
(Do poema “Tenho medo”)

 “Tinha no lugar
dos olhos
dois buraco
s negros
tão fundos
que se viu extinta
a ideia
de se aventurar
por novos pontos
no espaço”
(Do poema “Profeticamente”)

Por outro lado, Moção é descrito como um lugar de trabalho árduo

“Terminaram os preparativos
quando se gastaram todas
as braçadas de lenha
que tinham carregado
às costas”
(Do poema “Cultos”)

 onde o Homem persiste e insiste em controlar a própria Natureza, nomeadamente desviando o curso original de um rio por forma a aumentar as suas colheitas e, deste modo, delas poder (sobre)viver.

“Não sei
porque te desenharam
um rosto
te deram formas
(…)
contornando as margens
das velhas correntes
que estagnaram no lodo
que as fabricou”
(Do poema “Não sei”)

“Irrigaram-se os campos
numa mostragem breve
de como se deve beber
sem ter sede
de como se devem
encaminhar as águas
sem saber os cursos dos rios”
(Do poema “Tempo de espera”)

Contudo, esta “Terra infértil” nem sempre se deixa “domar pelos braços/de quem tem fome”, por isso “as lágrimas irrigam os campos enquanto da serra não chegam os ventos nem as últimas levadas”.
Nesta terra de becos, carpinteiros, “gigantes/adormecidos/no caminho/das giestas”, peneiras, raposas, “olhares mortiços”, moinhos, “línguas de fogo”, palmos de chão galgados, orquídeas, foices e “enchentes na voz”, a religião enraíza-se. Daí que os rios onde as pessoas se miram sejam de “água benta”, as virgens sejam excomungadas “pelo canto das aves” e a terra, “pisada e recalcada”, não esteja abençoada quando se encontra “fria/nua e crua”.

“Já me vi em dias de sol
sem sol
a sacudir
o sino da capela”
(Do poema “Já me vi em dias de sol sem sol”)

Todavia, e apesar de “em redor das estrelas” o movimento ser circular e, deste modo, regrado e cíclico como a própria Natureza se espelha sobre os campos,

“Dos ramos caídos
desponta a folhagem nova”
(Do poema “Mundo dos novos loucos”)

“havia raízes tenras
a nascer
nas enseadas”
(Do poema “Já me vi em dias de sol sem sol”)

a identidade, por vezes, esmorece; e os limites do corpo tornam-se uma miragem ou uma “mera desfocagem” deambulando por “atalhos remendados/e restos de eras disseminadas”. Nesta circunstância, o encontro “dum lugar incerto/mas dum tempo certo”, onde o reencontro exista, torna-se urgente, já que a tristeza avassala todo o mundo disseminando caos e solidão.

“Mundo submerso
por duas lágrimas
a molharem-me os pés
ainda nus sobre a terra
enquanto a chama corrente
aguarda pela variações”
(Do poema “Tempo de espera”)

Fizeram-se verdes
os meus olhos
e negras todas as bocas
ao caírem nas luras
de um corpo proscrito
moldado em aço
(Do poema “Corpos de Aço”)

Soletrei o teu nome
e só o som da minha voz
foi eco
(Do Poema “Eco Feroz”)

Não obstante, Moção também é palco de “dias de sol sem sol”, conduzindo-nos aos tempos onde existiam “caminhos longos/a fazerem-se breves” nos passos “ainda frescos”. Nesses dias, há corpos trôpegos “a escutar/o canto dos pássaros” e cancelas semiabertas “aos voos nocturnos”.

“Tão forte a corrente
que se fez pele
na minha pele
como um vento”
(Do poema “Caiu-me mel”)

A terra que cria, porém, é a mesma onde o corpo se decompõe. Daí que existam “Foices a calcular a métrica” que farão os corpos “alcançar/os caules/as folhas/e/as raízes secas/junto ao chão”, sendo necessário que o conhecimento das terras passe de boca em boca, e de geração em geração, para que os próprios cultivos também se propaguem e, desta forma, se perpetue tanto o ciclo da vida como o seu sustento.

“Diz-me
como ouvir o prenúncio
da última idade
como se apanham as cerejas
como se comem as amoras
como se lavra a terra
se regam os campos
e
se mondam as searas”
(Do poema “Moinhos de vento”)

É preciso entender “os sinais do tempo” e as vozes que vaticinam. Porque, em Moção, o Homem confunde-se com a própria terra que o sustém

“Se escutares com atenção
ouvirás da minha boca
o sussurro do vento”
(Do poema “Alvorada”)

e nenhuma defesa será suficiente contra as raízes que se estendem da terra até ao Homem, fixando-se nas redes inefáveis e inevitáveis da sua memória.
Assim nos prova este livro.
E assim o comprovamos nós, meros visitantes desta terra tornada prodígio pela acção da emoção e da memória.


Sofia Gabro

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Apresentação de "Uivam os Lobos" em Alenquer

"Uivam os Lobos", vai estar no Museu João Mário em Alenquer. A Apresentação estará a cargo de Celeste Almeida, (autora dos programas "As Nossas Raízes, o Passado e o Presente, e "À Descoberta de Portugal" na Rádio Limite de Castro Daire.
O grupo Almas no Teatro fará uma representação de alguns poemas do livro


Ser Poeta é...

Queria falar-vos sobre a poesia de agora. A que move muitos poetas. A poesia que desfila diariamente pelas redes sociais e sites na internet.

Perguntaram-me num programa de radio se com a poesia se ganhava dinheiro. Penso que se ganham coisas mais importantes do que o dinheiro. Mas, isso também depende do que é importante para cada um como garantia para ser um bom Poeta
Florbela Espanca, escreveu: “ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens…”

Pois é! Ser poeta nos dias de hoje, para muitos poetas, não é o mesmo que para Florbela Espanca. Para muitos, ser poeta é ser maior entre os homens. É garantir um estatuto, um nome, engordar o ego com a satisfação de muitos desejos de poder. Migram os seus versos por caminhos terrenos, em busca de algo que os ajude a viver neste mundo podre e doente.

Dizem por aí que a poesia é a expressão da linguagem da alma. Dizem também, que a poesia expressa os sentimentos mais íntimos e profundos. Dizem que acode também os pensamentos mais incautos.
Dizem tanta coisa da poesia de antes, dos que foram Poetas e o continuam a Ser entre nós - espíritos errantes pelo mundo, a quererem prevalecer e revelar aos poetas ainda vivos que a morte não existe para qualquer Poeta, assim como não existe para a vida.

Mas que diriam os poetas de antes, se pudessem manifestar-se através da linguagem eterna, neste novo mundo onde a poesia se alastra como rastilho de pólvora, por todos os caminhos virtuais, onde nasce a cada dia um poeta?

Que diriam eles, Poetas Maiores que se eternizam num além tão próximo, se visitassem o aquém tão distante para muitos poetas que para o serem se esquecem de ser Pessoas? Desfilam num tapete forrado de palavras incertas num corrupio de vaidades, onde a demagogia cria raízes profundas. Trazem-nos imagens desfocadas no meio dos escombros, envoltos em palavras inusitadas e despropositadas, a utilizar a linguagem da alma. A poesia sofre por todos os poetas de antes e até pelos poetas de agora, que à força de quererem ser poetas, esquecem onde colocar o verso no Verbo, forçando-o a visitar mundos desequilibrados.

Neste mundo virtual, a poesia anda de mãos dadas com um maior número de gostos, para que a classificação seja justa com o estatuto merecido. Não esquecer também os títulos. Isso é importante, para se ajuizar sobre um bom poeta;
Senhora Doutora, senhor Professor, senhora Professora, Senhor Engenheiro,….e mais isto aquilo, para revelar que ali não mora só a poesia, não. Ali reside um bom Poeta;
 “bravo Senhor Doutor, Doutora, Professora ou Professor pelo grandioso poema que aqui nos deixa.”
“o seu nome, Senhor Doutor, devia figurar numa rua da nossa cidade, como um dos maiores poetas da actualidade.”

E por aí adiante.

A alma da poesia encolhe-se, contorce-se de dor, fragmenta-se sem dó nem piedade, pelas ruas escuras de uma cidade, onde os mendigos criam em cada naco de pão, um poema, um verso, o desejo de serem só almas errantes pelos caminhos, onde o verso no Verbo  os acolhe.

Para os poetas de agora não basta ser poeta. Corroídos por um desejo doentio de serem mais qualquer coisa…coisa que se veja, que os classifique numa ordem imposta pelo sentido ascendente até atingirem o topo da pirâmide, onde estão os poetas maiores.

Mas, invertendo a ordem ascendente segue-se a descendente, a que nos fez vir aqui para nos revelarmos Pessoas na vida e poetas num além tão perto do Arquitecto Maior. O maior Poeta de todos os tempos. A fonte é e sempre será a mesma. Não se iludam Poetas!

Dakini


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Linguagem do amor


No tumulto dos olhos
revoltam-se
os olhares torturados 
pela ausência
de cor

No alvoroço da noite
abrem-se os lábios
à nova torrente
escancarando 
a dor

Esbeltas são 
as lágrimas
que se afogam
na linguagem
do amor

Dakini