.

.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Prefácio - "Uivam os Lobos" por Sofia Gabro

Prefácio

“Uivam os Lobos” assemelha-se a um palco de memórias. Nele se contam, e encontram, de um modo imensamente vívido, uma série de imagens remanescentes de um outro tempo, aqui presente sob a forma de um eco, retumbando por entre os versos que o firmam.

“Sou libertina de um costume antigo
tenho o corpo feito de metais
boca de sangue e ferro
braços presos nos matagais”
(Do poema “Tenho medo”)

“Soando nas têmporas
as batidas cardíacas
a reboque de um eco forte
no alto da cabeça”
(Do poema “Marés Negras”)

Nos poemas de Dakini, os quatro elementos confluem de um modo contínuo e extremamente natural estando estritamente ligados à vida de quem vive no (e do) campo, debatendo-se com os efeitos nefastos das intempéries e jubilando com os tempos propícios ao afloramento. Desta forma, somos convidados a tomar parte de um mundo recordado e, consequentemente, também recriado, onde se ouvem as campainhas “a chocalhar nos montes” e o “caminhar das águas”, ao mesmo tempo que o fogo se ateia para que nele se concentrem “todas as fogueiras” e o “vento uiva”, apesar do seu eco adormecer sozinho “a contraluz”.
Moção, a terra-origem de Dakini, desempenha, neste livro, um papel fulcral, servindo, não só de cenário e inspiração, como também de lugar de aprendizagem - já que foi aqui que a autora deu os seus primeiros passos e absorveu as suas primeiras estórias, iniciando a construção de todo um imaginário que a acompanhará ao longo da sua vida, despertando-lhe tanto temor quanto fascínio.

“A rua onde moro
é escura no pranto
ladainha surda
como um lobo de matilha”
(Do poema “Em transe”)

“Estão as portas fechadas
e eu tenho frio
muito frio dos lugares inóspitos
e medo
muito medo dos açaimes brancos
(…)
Tenho medo
muito medo das colinas
onde me esperam
outras histórias”
(Do poema “Tenho medo”)

 “Tinha no lugar
dos olhos
dois buraco
s negros
tão fundos
que se viu extinta
a ideia
de se aventurar
por novos pontos
no espaço”
(Do poema “Profeticamente”)

Por outro lado, Moção é descrito como um lugar de trabalho árduo

“Terminaram os preparativos
quando se gastaram todas
as braçadas de lenha
que tinham carregado
às costas”
(Do poema “Cultos”)

 onde o Homem persiste e insiste em controlar a própria Natureza, nomeadamente desviando o curso original de um rio por forma a aumentar as suas colheitas e, deste modo, delas poder (sobre)viver.

“Não sei
porque te desenharam
um rosto
te deram formas
(…)
contornando as margens
das velhas correntes
que estagnaram no lodo
que as fabricou”
(Do poema “Não sei”)

“Irrigaram-se os campos
numa mostragem breve
de como se deve beber
sem ter sede
de como se devem
encaminhar as águas
sem saber os cursos dos rios”
(Do poema “Tempo de espera”)

Contudo, esta “Terra infértil” nem sempre se deixa “domar pelos braços/de quem tem fome”, por isso “as lágrimas irrigam os campos enquanto da serra não chegam os ventos nem as últimas levadas”.
Nesta terra de becos, carpinteiros, “gigantes/adormecidos/no caminho/das giestas”, peneiras, raposas, “olhares mortiços”, moinhos, “línguas de fogo”, palmos de chão galgados, orquídeas, foices e “enchentes na voz”, a religião enraíza-se. Daí que os rios onde as pessoas se miram sejam de “água benta”, as virgens sejam excomungadas “pelo canto das aves” e a terra, “pisada e recalcada”, não esteja abençoada quando se encontra “fria/nua e crua”.

“Já me vi em dias de sol
sem sol
a sacudir
o sino da capela”
(Do poema “Já me vi em dias de sol sem sol”)

Todavia, e apesar de “em redor das estrelas” o movimento ser circular e, deste modo, regrado e cíclico como a própria Natureza se espelha sobre os campos,

“Dos ramos caídos
desponta a folhagem nova”
(Do poema “Mundo dos novos loucos”)

“havia raízes tenras
a nascer
nas enseadas”
(Do poema “Já me vi em dias de sol sem sol”)

a identidade, por vezes, esmorece; e os limites do corpo tornam-se uma miragem ou uma “mera desfocagem” deambulando por “atalhos remendados/e restos de eras disseminadas”. Nesta circunstância, o encontro “dum lugar incerto/mas dum tempo certo”, onde o reencontro exista, torna-se urgente, já que a tristeza avassala todo o mundo disseminando caos e solidão.

“Mundo submerso
por duas lágrimas
a molharem-me os pés
ainda nus sobre a terra
enquanto a chama corrente
aguarda pela variações”
(Do poema “Tempo de espera”)

Fizeram-se verdes
os meus olhos
e negras todas as bocas
ao caírem nas luras
de um corpo proscrito
moldado em aço
(Do poema “Corpos de Aço”)

Soletrei o teu nome
e só o som da minha voz
foi eco
(Do Poema “Eco Feroz”)

Não obstante, Moção também é palco de “dias de sol sem sol”, conduzindo-nos aos tempos onde existiam “caminhos longos/a fazerem-se breves” nos passos “ainda frescos”. Nesses dias, há corpos trôpegos “a escutar/o canto dos pássaros” e cancelas semiabertas “aos voos nocturnos”.

“Tão forte a corrente
que se fez pele
na minha pele
como um vento”
(Do poema “Caiu-me mel”)

A terra que cria, porém, é a mesma onde o corpo se decompõe. Daí que existam “Foices a calcular a métrica” que farão os corpos “alcançar/os caules/as folhas/e/as raízes secas/junto ao chão”, sendo necessário que o conhecimento das terras passe de boca em boca, e de geração em geração, para que os próprios cultivos também se propaguem e, desta forma, se perpetue tanto o ciclo da vida como o seu sustento.

“Diz-me
como ouvir o prenúncio
da última idade
como se apanham as cerejas
como se comem as amoras
como se lavra a terra
se regam os campos
e
se mondam as searas”
(Do poema “Moinhos de vento”)

É preciso entender “os sinais do tempo” e as vozes que vaticinam. Porque, em Moção, o Homem confunde-se com a própria terra que o sustém

“Se escutares com atenção
ouvirás da minha boca
o sussurro do vento”
(Do poema “Alvorada”)

e nenhuma defesa será suficiente contra as raízes que se estendem da terra até ao Homem, fixando-se nas redes inefáveis e inevitáveis da sua memória.
Assim nos prova este livro.
E assim o comprovamos nós, meros visitantes desta terra tornada prodígio pela acção da emoção e da memória.


Sofia Gabro

Sem comentários:

Enviar um comentário