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sexta-feira, 29 de maio de 2015

Vazio

Arrumado o corpo
no sofá
continuamente
 só
no lamento
dos olhos
a voz trémula
aos sobressaltos
pela cozinha

Bebe um chá
mas só,
desesperada
(mente), só
ouve-o escoar-se
pela garganta inchada
de tanto se dizer, só
por quanto grito irado

Dança às vistas
da janela,  mas  só
sempre só
admite do relógio da Sé
um gemido rasgado
a fragmentar o silêncio
predestino seu
e das vidraças embaciadas
por conta do seu olhar
        anilado

Esmiúça os versos
de um tempo 
envelhecido ao serão
cujo poema 
cospe  a solidão
num prato rachado

Ouve-se morna
a respiração cansada
por sentimentos
gelados, calados
sentires contrários 
aos modos de antes
num corpo abonado

Mas, só, sempre só…
em frios desertos 
e  vazios distantes 
permite-se no corrupio
de uma lágrima

Dakini

Às Vezes

Às vezes não me sinto
quando penso…
a querer descodificar 
o pensar
tantas vezes remendado
de um poema 
alheio ao seu próprio 
movimento

Tenho dias que sinto
pulsarem-lhe os olhos
para dentro das mãos
quando vejo
dedos apontados
para o céu

A inspiração não chega
e o poeta quer 
assimilar do ar
o seu  Eu metafórico

A metáfora 
nunca vem só
não vem
a imagem criada
à volta do fogo
que circunda 
o olhar cansado

O poeta é o seu desejo
de se colocar 
em bicos de pés
e partir o poema
pela metade

Dakini

Entre dois lugares

Ouviam-se murmúrios
chegados de um lugar remoto 
a castigar-lhe os pés

Incertos os seus passos
por quanto os rumores  
e odores a naftalina fina

Ditam-se instantes
percorridos entre dois lugares

Acomodam-se as vénias
e cruzes por entre as vestes
dominicais

Confundem-se 
os vermelhos todos
no centro interminável
de um molde inexpressivo
 mas convexo 
o centro do amplexo 
raiado no lugar dos olhos

As palavras pintadas
com o suco de uma amora
esborrachada
nas palmas das mãos
sucumbem, estigmatizadas
por entre os aromas silvestres
dos ciprestes

Os olhares cativos
e  não traduzidos
em todas as línguas
transeuntes despidos
mal(diziam-se )
em farrapos nas avenidas

O sino anunciava-se
firme no alto do seu trono
última fronteira
que engolia de olhos fechados 
o vermelho sangue
de uma amora
outrora renascida
num lugar ermo

Dakini

Eus...e Eu

Às vezes penso que não sou eu que escrevo
porque há coisas que escrevo
que não as sinto como sendo eu

E por me saber um "não eu"
confundo-me entre os nomes
que deveriam ser os verdadeiros
autores de um poema

Espero então
que sejam só uma reviravolta
a dar ao meu verdadeiro eu

Dakini

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Onde o cheiro se faz morte

A partitura serenou o espírito 
de quem se encontrou 
com a verdade
mas a mentira cobriu-a
fez-lhe um filho sem idade

(As mentiras fazem-lhe agora tremer os olhos)

Ouviam-se sons que chegavam 
de um lugar secreto. As bocas engoliam 
notas soltas
à solta pelas nuas encostas
onde já nem as pedras choram
e nem os animais se tocam

A humanidade parece-se 
com uma maçã podre
dentro de uma cesta de vime
que faz da cesta de vime, esteira
como se a morte 
fosse só uma mão aberta 
para a fome

Têm os infelizes todas as letras 
para formarem novos nomes
as pautas abertas
os saxofones prontos
e sopram para dentro deles
como se fossem pães 
acabados de sair do forno

São todos eles
uma chusma com ganga
no pescoço
comandita a querer pisar o morro 
que desmiolado se vai definhando
e até se acabar
chora a dor de não poder sair 
e evaporar-se para outro lugar

Cantam às almas lá para os lados 
onde morreram todos os lobos
que, famintos desceram a encosta
a espumarem pela boca

Todos se encolheram 
até que chegasse a primavera 
e lhes desse mais um pouco 
de chão para cobrir
tal como os bois 
cobrem as vacas
e os carneiros, as ovelhas
e os homens, as mulheres
e os galos, as galinhas

A cacarejar de asas ao vento
lá vão elas até que a fome as leve 
como quem leva um coelho 
pelo cangote sem pelo

São os ventos e as brisas
e as flores que nasceram já
em todas as árvores

São os filhos das partituras
que pediram para nascer
nos caminhos
onde há bosta para pisar
ou até para rasurar alguma 
obra de arte
que irá nascer ainda
de verdade

Dakini "Eventos"- Maio 13

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Esta brisa que me atiça


Tinha um turbante dourado
amarrado ao pescoço
e um manto branco 
a cobrir-lhe a pele
que de tanto arejo
salpica de vez em quando
ventos ciclónicos
por sobre a face 
do quebranto da noite

- persegue-me esta brisa 
que me atiça 
em noites 
de lua cheia

Dolores Marques/Dakini "Uivam os Lobos"