Boa
tarde,
Começo
por agradecer o convite da Dolores, uma querida amiga que muito estimo, e dizer
que é com muito gosto que aqui estou.
Cabe-me,
nesta sequência, a apresentação do livro que hoje aqui nos trás
A
primeira tarefa para quem pretende apresentar um livro é, evidentemente, ler o
livro,
E
assim fiz.
Acontece
que, efectuada essa tarefa, surgiram-me vários questionamentos,
Esclareço,
nenhum em relação às palavras que hoje vos são apresentadas, porque reconheço
nesta escrita uma evidente qualidade, quer pela profundidade, quer pela
sensibilidade, características que sempre encontro no verso da Dolores
Mas
uma hesitação prolongada quanto à forma de iniciar esta apresentação
É
que, após ler e reler, demoradamente, o livro, surgiram-me, quase
instintivamente, inúmeras ideias e formas de o abordar
E, de
facto, talvez seja apropriado falar de abordagem quando nos dispomos, como foi
o meu caso, a invadir as palavras de outra pessoa,
Embora,
confesso, terminadas as leituras, a sensação que permaneceu é de que, afinal, foi
o texto que me invadiu, numa pluralidade de inquietações.
Resolvi,
então, deixar as palavras repousar durante uns dias,
Até
que, num determinado momento, um eco se tornou predominante
“Não se deve voltar ao lugar onde fomos felizes”.
Devo
esclarecer que, definitivamente, não concordo.
Eu,
pessoalmente, recuso-me é a voltar aos lugares onde fui infeliz.
Mas,
na verdade, todos nós, inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, regressamos a
esses lugares
Esta
ideia – de não voltar ao lugar feliz – impôs-se, assim, como o ponto de partida
para esta apresentação
E
como um improviso absoluto é sempre absolutamente imprevisível, vão-me permitir
que vá utilizando umas notas que alinhavei a este propósito
“Não se
deve voltar ao lugar onde fomos felizes”.
Ora,
regressar a um lugar, percorrer um caminho anteriormente percorrido, é sempre
uma peregrinação.
Poderíamos
talvez definir o conceito dizendo que uma peregrinação é o caminho que um devoto, voluntariamente,
se predispõe a fazer rumo a um lugar que crê ser sagrado.
Assim,
uma peregrinação é sempre uma romagem motivada numa crença.
Às
vezes é prece, promessa ou profecia,
Outras
vezes é autopunição e até via para a redenção de um “pecado-passado”.
Há,
contudo, na sua variação conceitual, constante e inquestionavelmente, um traço
de religiosidade que lhe é indissociável
E se
assim é, para compreender uma peregrinação é absolutamente necessário, antes do
mais, perceber porque determinada pessoa se predispôs a efectuá-la.
Mais
ainda quando sabemos que peregrinar tem sempre imanente uma ideia de penosidade
e de sofrimento.
Esta é a minha fundamental convicção
– este livro é uma peregrinação.
É
certo que, enquanto caminhar, uma peregrinação implica movimento,
Mas,
todavia, peregrinar não exige necessariamente um deslocamento físico, nem o seu
percurso é necessariamente medido em metros.
A
invocação interior de uma memória é seguramente uma deslocação, mesmo sendo,
como reconheço, uma deslocação inerte.
Este
movimento (aparentemente imóvel) reconduz-se como pensamento
E o
pensamento, pela sua inderrogável essência, estático nunca é.
Assim,
quando é só pensamento, a peregrinação é um vaguear, um percorrer de lugares
passados, nos quais, bem sabemos, a angústia sempre assoma e nos confronta.
Pela
própria natureza do passado, que, por o
ser, não volta mais.
Mas
se o passado – precisamente por ser passado
– não volta,
A ele
– por passado ser - podemos nós
regressar.
Assim
se pode encontrar, nos primeiros versos do primeiro poema, a anunciação de um
caminho
«Traziam campainhas
a chocalhar nos montes/
e nas mãos
línguas de fogo/
douta inspiração/
chegada cedo
de lugares primitivos»
Reitero,
na minha interpretação, sempre discutível e subjectiva, “Uivam os lobos” é uma
peregrinação.
Um
regresso ao lugar passado, seguramente,
Ou
como diz o verso, “aos lugares
primitivos”.
Não
deixa, aliás de ser curioso notar que, em latim, peregrinação diz-se “per
agros”, ou seja “pelos campos”.
Por
lugares e também por um “Eu”, interior e
anterior, que se auto observa.
E, de
facto, no livro, pelo verso, o sujeito poético retorna à terra inicial, no
mesmo recriada, como bem se refere no prefácio deste livro,
Nesse
prefácio, aliás excelente e que enriquece o livro de forma marcante, desenvolve-se
a ideia
Dessa
umbilical ligação do verso à terra, tantas vezes infértil,
Da indissociável
raiz da palavra que se escreve num palco de memórias, onde se encena, citando o
prefácio, “todo um imaginário que
acompanhará (a autora) ao longo da sua vida, despertando-lhe tanto medo quanto
fascínio”.
Afirmação
que, aliás, o verso confirma
«Estão as portadas fechadas
e eu tenho frio/
muito frio dos lugares inóspitos/
e medo/
muito medo dos açaimes brancos»
e eu tenho frio/
muito frio dos lugares inóspitos/
e medo/
muito medo dos açaimes brancos»
E quando
assim é, voltando ao prefácio,
“Nenhuma defesa será suficiente contra as
raízes que se estendem da terra até ao Homem, fixando-se nas redes inefáveis e
inevitáveis da sua memória”.
E é
exactamente através dessa memória que se inicia esta peregrinação ao passado,
É um
regresso a um determinado tempo,
Um
tempo inicial, percorrendo os campos, voltando á fonte da inspiração, original
Mas
não só,
O
sujeito poético, observador, parte de um tempo presente e regressa aos lugares
passados, através da memória, recriando esses lugares,
Mas
também, num movimento ambivalente, projecta-se no futuro, mimeticamente antecipando
o devir, poeticamente o pressagiando.
Diz o
verso
«Tenho medo/
muito medo das colinas/
onde me esperam
outras histórias /
visionárias de novos mundos»
muito medo das colinas/
onde me esperam
outras histórias /
visionárias de novos mundos»
Como
referi, para se perceber uma peregrinação é necessário compreender a motivação
que a sustenta.
Dispus-me,
assim, a tentar perceber qual a motivação deste livro, desta peregrinação.
Uma
das pistas mais imediatas é a percepção da sistemática em que o livro se
estrutura
O livro
é composto por dois capítulos e, diria ainda, por um epílogo
Função
que atribuiria ao último poema “Já me vi em dias de Sol, sem sol”, para mim,
aliás, talvez o mais belo e profundo poema deste livro.
Todavia,
se realmente o for, é um epílogo oculto, porque no livro não o encontramos com
essa autonomia formal
O que
encontramos é um primeiro capítulo denominado “Mimetismos”,
E um
segundo capítulo intitulado “Cultos”.
Ora, poderíamos
dizer que mimetismo é a semelhança que um determinado ser ou organismo adquire
por influência do meio onde se insere,
É, no
fundo, a adaptação a uma realidade através da sua replicação
Estamos,
aqui, portanto, perante o conceito de evolução
convergente
Na
verdade, todos somos objecto de socialização, de forma sempre intensa, muitas
vezes forçada
E, cada
vez mais, vivemos numa sociedade mimética
Do
ponto de vista das espécies,
Referência
inevitável em face do título do livro,
O
mimetismo é um processo de evolução da espécie, resultado da sua mútua
interação, que conduz a uma harmonização ou padronização de comportamentos
Neste
livro, o sujeito poético figurado é um lobo, melhor uma loba, que
Tendo
deixado a alcateia, caminha agora solitária,
Num
percurso que procura a compreensão do mundo onde se insere,
Mas
que é simultaneamente um percurso de auto-compreensão
Este
primeiro capitulo do livro, é o regresso ao passado, á terra,
E,
assim, aqui vamos encontrar o sonho, às vezes pueril, a crença, o amor (o
conceito primeiro, o amor original), mas também a desilusão, a descrença, o
desamor que logo lhes sucede
E,
assim sendo, existe também, imersa ao verso, uma ideia de evolução divergente, na medida em que percebendo a sua mimética aculturação,
num olhar ao espelho, o sujeito poético rebate-a, questiona-a, rebela-se
Na
verdade, há aqui uma ideia de destino, a ideia de uma predestinada convergência
com um mundo que não era o pretendido, mas que é o mundo efectivamente existente
– o presente
Assim
diz o verso,
«Não
sei porque te desenharam um rosto/
te deram formas ignorando o simples facto de te saberes uniforme/
contornando as margens das velhas correntes
que estagnaram no lodo que as fabricou»
te deram formas ignorando o simples facto de te saberes uniforme/
contornando as margens das velhas correntes
que estagnaram no lodo que as fabricou»
Dizem
que os lugares se alteram com a passagem do tempo
Mas
muitas vezes o passar do tempo altera ainda mais a pessoa que os observa
Talvez
os lugares nunca sejam exactamente iguais,
Mas
certamente diferente é o sujeito quando a eles regressa
Assim,
este movimento de regresso nunca se chega a desprender completamente do
presente que o observa, e, por essa razão, sente-se no verso uma profunda
nostalgia, às vezes saudade, às vezes conformação, outras vezes até crítica
Como
se escuta no verso
«Dá-me da madrugada
o que é a tua voz/
e diz-me dum sítio/
dum lugar incerto/
mas dum tempo certo
onde me esconder»
o que é a tua voz/
e diz-me dum sítio/
dum lugar incerto/
mas dum tempo certo
onde me esconder»
Porque
as coisas nunca são como as imaginamos, nem sequer como as vivemos, há uma
marcante nostalgia neste capítulo
Até
porque, afinal, esta peregrinação é uma auto-peregrinação
O
segundo capítulo denomina-se “Cultos”
Um
culto processa-se por um acto solene, por uma liturgia
Um
culto é, assim, um caminho solene para a compreensão,
Quando
se perceciona o objecto do culto,
Compreende-se
também a identidade e a motivação do devoto.
Neste
sentido também neste capítulo encontramos um caminho de auto-compreensão
Mas
já não no tempo passado,
Agora
é um estar, um passo presente que, simultaneamente, antecipa o futuro
E,
assim sendo, necessariamente um espaço de esperas, como se diz no primeiro
poema desta parte
«Mundo submerso
por duas lágrimas
a molharem-me os pés
ainda nus sobre a terra/
enquanto a chama corrente
aguarda pelas variações/
num tempo de espera»
por duas lágrimas
a molharem-me os pés
ainda nus sobre a terra/
enquanto a chama corrente
aguarda pelas variações/
num tempo de espera»
Mas é
também um espaço de angústia, às vezes nostalgia, outras quase desespero
«Aconteceu-me um tempo
que me arrasta
lá para os lados
onde me esperam
todos os moinhos de vento»
Cultos, é assim, um auto reencontro, entre a percepção de um passado, tanto aculturado, quanto doloroso,
que me arrasta
lá para os lados
onde me esperam
todos os moinhos de vento»
Cultos, é assim, um auto reencontro, entre a percepção de um passado, tanto aculturado, quanto doloroso,
E o questionamento de um
presente-futuro
Deste
movimento emerge a poesia, num olhar que se define métrico poema
«Tristes
são todos os olhares
que
engoliram o mundo /
sem
saberem
onde
enterrar os corpos/
Foices
a calcular a métrica
que
os fará alcançar /
os
caules
as
folhas
e
as
raízes secas
junto ao chão»
Permitam-me
apenas mais um sublinhado,
Existe
um traço essencial que percorre todo o livro,
Que é
simultaneamente mimetismo e culto,
Um
amor, uma emoção profundamente marcante, que procede da origem e que, ainda que
agora ausente, se mantém demasiadamente presente
Como
por exemplo se sente neste trecho:
«Esqueci-me de ti
quando o vento se aproximou /
falando-me nas horas vagas
dum mar imenso de saudade»
quando o vento se aproximou /
falando-me nas horas vagas
dum mar imenso de saudade»
Disse
que para se perceber uma peregrinação seria necessário compreender a motivação
que a sustenta.
Retomo,
agora e como ultima referência, o título do livro: “Uivam os lobos”.
Um
uivo é um grito entristecido, um eco de um passado que se antevê igual
E, se
assim é, pergunto-me: Mas, afinal, porque uivam os lobos?
Escutemos,
uma última vez, o verso
«Uivam
os lobos
por falta de nortadas quentes/
caminhantes na certeza
por falta de nortadas quentes/
caminhantes na certeza
de
uma única noite/
que será eterna»
que será eterna»
Filipe Campos Melo
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